Escrevo para que no outro me identifique, tendo como referência apenas o ponto de partida – a minha História – Onde nossas histórias se cruzam? O que temos em comum? Escolhas, decisões, medos, enfim, nossas vidas se combinam num traçado desalinhado, escritas, pichadas, rabiscadas, grafitadas nas paredes e muros dos becos e vielas que corremos desde cedo com os pés descalços. Brincamos de polícia e ladrão, de pique esconde, crescemos munidos e municiados de sonhos, muitos frustrados pelas circunstâncias submetidas, contudo, como sinal de que há luz no fim do túnel algumas referências surgem para provar que nem tudo está perdido.
Da Vila Aliança, o primeiro Conjunto Habitacional da América Latina para a Rocinha, a maior Favela do mesmo continente, circulo nessa cidade sem medo, tomando a liberdade de exercer meu direito, não contentando-me a ficar condicionado ao quadrado imposto como meu lugar, levo comigo minha raízes, quando volto à origem sinto-me como na Alegoria da Caverna de Platão, os moleques iguais a mim ainda acreditam que as sombras ilusórias que os limitam às fronteiras do que chamam pejorativamente de “Comunidade” é tudo o que eles têm, nela nascem, crescem, reproduzem e morrem, muitos morrem antes de reproduzirem, pois são capazes de matar ou morrer por uma ideologia contestável de que mais vale viver pouco como rei do que muito como Zé, assim cantam os Racionais MC’s.
Sou um Zé, negro e favelado que vem contrariando as estatísticas há 34 anos, sobrevivi ileso de balas de todas as partes, das rivalidades do tráfico, das trocas com a polícia, do fogo amigo, até mesmo dos otários que viram bichos ferozes com a arma na mão como cantava Bezerra da Silva e são capazes de matar por inveja da roupa que você veste de grife, sem considerar que foi fruto de muito trabalho honesto, ou porque você namora a garota mais gostosa da área sem precisar meter a mão no ferro ou andar com um veículo roubado para chamar de seu.
Meu transporte sempre foi o livro, embarcado em cada leitura conheci o mundo, idiomas e culturas, desde criança, ali fui fisgado, minha curiosidade, meu vício – os universos que todos somos – diria Jung, quando descobri que me limitar seria uma perda irreparável, pois as fronteiras entre os tantos que sou não caberiam nos muros sociais invisíveis, só entendi tudo isso ao conhecer Fernando Pessoa.
Cresci criando os caminhos que não existiam, superando obstáculos e construindo pontes, foi assim que as palavras e ações me levaram a lugares antes inimagináveis de chegar, aos poucos a vida daquele moleque que cresceu sem livros foi virando um roteiro vivo, uma biografia que mais parece ficção, humilhado pela professora de língua portuguesa na adolescência, saí da escola porque não tinha livros, aos dezoito crio minha biblioteca comunitária, como era meu refúgio, batizei de Quilombo dos Poetas, prejudicado pela falta de escolaridade não realizei o sonho de ser paraquedista, mas essa idade marcou minha afirmação na escrita, depois de participar do IV Concurso de Crônica e Poesia do Grêmio Literário José Mauro Vasconcelos em Bangu e ficar entre os 7 primeiros colocados com duas crônicas, fui incentivado a continuar nessa caminhada.
Dez anos depois, muita coisa vivida, fundei um centro cultural, mediei conflitos, realizei sonhos, meus e de outras pessoas, ora me via mensageiro, ora eu era a mensagem, confesso que muito contestei o porquê de ser e fazer o que me tornei feitor. Eu apenas era um cara inconformado e sabia que de forma criativa poderia agregar valores aos outros sonhadores que assim como eu tentavam fazer a diferença. Em 2013 criei a Flizo – A Festa Literária da Zona Oeste, aquele garoto que adorava livros, mas não tinha livros para ler, passou a escrever, depois criou uma biblioteca, fundou um centro cultural, publicou livros, idealizou uma festa literária, e por fim, abriu uma editora. Se Deus escreve certo em linhas tortas a minha vida é um exemplo literal desse clichê.
Essa mensagem tem sido levada aos extremos e improváveis lugares, dos palácios às cadeias, dos governantes e intelectuais aos moleques de pés no chão de terra e pessoas de cadeira de roda. Aprendi a devolver o direito de sonhar, para isso, os sonhadores que se realizam devem estar bem pertinho de quem perdeu as esperanças, ao contrário do que dizem, a esperança não é a última a morrer, a desesperança é uma morte em vida.
Meninos e meninas das Favelas do Mundo, jamais permitam que enclausurem seus sonhos, suas criatividades, seus pensamentos, seus sorrisos. Sejam determinados a vencer, pessoas como nós nasceram para superar, nascemos mais que vencedores, lutamos contra uma forte correnteza que nos empurra contra um muro de pedras do descaso, querem que acreditemos na servidão, mas sejamos protagonistas, e como diz Augusto Cury, autores de nossas histórias.