Ao terminar, aos dezoito anos, o Ensino Médio (antigo Segundo Grau) tive um pensamento comum a muitos jovens no final dos anos 90: acabei os estudos. Naquela época, o Enem estava sendo criado, mas só em 2004, com o Programa Universidade para Todos (ProUni), passou a usar a nota do exame para conceder bolsas integrais e parciais aos participantes, e, finalmente, em 2009, com a criação do Sistema de Seleção Unificada (Sisu), o Enem mudou para o formato atual, com o objetivo de substituir o vestibular das Universidades Federais.
Oriundo de família nordestina em que poucos concluíram o Ensino Médio, preto e favelado, eu pensava já ter cumprido meu papel de estudante, e que era hora de conseguir trabalho para me sustentar. O ingresso numa faculdade sequer foi cogitado por mim, por algum familiar ou pelo Ciep Ayrton Senna, onde “terminei” os estudos. Mas tudo mudou quando meu amigo Bruno Pereira, ciente das oportunidades concedidas pelo Enem, me incentivou a continuar estudando, e eu, com quase trinta anos na época e me achando velho para voltar a estudar, relutei muito antes de aceitar o desafio, e enfim conseguir minha bolsa integral na PUC-Rio, onde me formei em jornalismo.

Pouco tempo depois do ingresso na PUC, eu recebi o convite do Bruno para ser Professor de Redação no Pré-Vestibular Comunitário da Rocinha (PVCR) projeto social que logo aprendi a amar, e onde também exerci a função de Coordenador. Por dez anos, ajudei dezenas de jovens da Rocinha a ingressar na faculdade, amadureci muito e entendi a importância do trabalho voluntário.
Felizmente a ambição dos jovens de favelas vem mudando, e todos os anos recebemos cerca de cem inscritos para nossa turma. Mas não são apenas os jovens que almejam uma vaga na universidade. Numa reunião sobre educação no Ciep Ayrton Senna, eu fui representar o PVCR para incentivar os estudantes do meu antigo colégio a fazer o vestibular. E ali, meus olhos brilharam ao conhecer a Maria Rizonete da Silva, uma paraibana que estava terminando o ensino médio aos 55 anos, e tinha como meta cursar faculdade de pedagogia. A educação mais do que nunca estava fazendo sentido para mim, e, por isso, assim que ouvi o relato de sua trajetória, imediatamente a convidei para integrar o PVCR, pois eu sabia que com o apoio necessário ela seria aprovada. Eu pude sentir a energia que ela irradiava e quis fazer parte dessa história incrível também.
E eu estava certo. A vida dela é repleta de superação e conquistar uma bolsa de estudos era questão de tempo, mas eu não tinha ideia de que os obstáculos eram tantos. Mãe de três filhos: Luciano, Rodrigo e Lucas, de 43, 41 e 30 anos, e avó de cinco netos: Mateus, 22; Sara, 15; Guilherme, 12; Alice, 10; e Miguel de 08 anos, Rizonete nunca teve muito contato com os livros, e aprendeu a ler com uma vizinha, paga pela sua avó, e só algum tempo depois entrou numa escola regular, onde ficou internada por alguns anos até ir morar na Rocinha, em 1973, com cerca de doze anos para trabalhar como babá no Rio de Janeiro, e aos catorze teve seu primeiro filho.
Rizonete mora na Rua Dionéia, na parte alta da Rocinha, e todas as noites se deslocava para assistir às aulas das 19h às 22h30 no PVCR, que fica na parte baixa da favela. Com problemas financeiros, e tendo que se dividir entre o trabalho de doméstica e os estudos, ela ainda teve problemas de saúde ao machucar o pé e ficar algumas semanas sem estudar e não conseguiu acompanhar o forte ritmo da turma. No ano seguinte, para piorar, veio a pandemia e as aulas passaram a ser on-line, e ela teve dificuldades com as aulas virtuais, pois não tinha computador e estudava pelo telefone celular. Rizonete ainda pegou covid e deixou todos preocupados, e seria compreensível que ela desistisse diante de tantos problemas, mas a força e a determinação dessa nordestina são realmente incomuns.
Atualmente, com 58 anos, ela passou em pedagogia na Uerj, um caminho que ela percorreu por méritos próprios, e que me deixa orgulhoso, assim como todos do PVCR e do Ciep Ayrton Senna, por ter acompanhado essa trajetória. Ela é um exemplo para mim, seus filhos e netos, assim como para os jovens de favelas e aqueles que mesmo não sendo tão jovens, acham que não podem reescrever sua historia, ingressar numa faculdade e tornar seu sonho realidade.
Mas para que serve a educação? Definitivamente, mudar de classe social e econômica através dos estudos no Brasil ainda é quase inatingível. Porém, essa história mostra que, seja na favela, seja na periferia, seja no Nordeste, muitas pessoas não alcançam seu potencial por falta de oportunidades. Certamente se a Rizonete tivesse acesso à educação regular desde criança, atualmente seria uma excelente pedagoga e teria influenciado positivamente muito mais pessoas. Além da ascensão econômica, a realização pessoal de exercer uma profissão ou função social desejada é ingrediente essencial para a receita da felicidade. Não se trata apenas de conseguir um emprego que pague melhor, mas de ser útil fazendo aquilo que escolheu, de contribuir com o próximo repassando os conhecimentos adquiridos. A educação serve para conectar pessoas, histórias, criar e fortalecer amizades, melhorar a autoestima, compreender melhor o mundo, entre tantas outras coisas interessantes.
O trabalho voluntário é uma das atividades que trazem mais retorno: o orgulho de ajudar o próximo e ter o coração aquecido por ver que nunca é tarde para recomeçar, independentemente das adversidades. Como disse Paulo Freire: “educação não transforma o mundo. Educação muda pessoas. Pessoas mudam o mundo.” A educação me mudou, a educação mudou a Rizonete, a educação mudou o Bruno. A educação pode mudar você também. Vamos mudar o mundo juntos.