Este texto é um relato nostálgico e “romantizado” sobre a minha infância vivida nos anos 80 na Rocinha.

As histórias contadas por quem as vive nas favelas carregam riquezas de detalhes se comparado com àquelas contadas de forma seca nos livros. Quero dizer com isto, que estes relatos narrados pelos favelados vêm carregados de nostalgia e uma enorme carga afetiva, fato este que muitas vezes guardamos no íntimo de nossas lembranças, por achar que não interessaria a ninguém por fazer parte da vida pessoal e afetiva.
Algo que me recordo da infância aqui na Rocinha são os diversos sons os quais preferi me referi-los como musicalidade porque é assim que soa para mim hoje e que na época eu vivia, sentia e não a percebia como hoje. Dessa forma, faço uma volta ao passado e analiso o meu presente. Percebi que a minha infância não foi marcada somente e intensamente por sons de tiros, como tem vivido hoje o meu filho e as demais crianças das favelas. Hoje, recordando vejo que foi prazeroso passar a infância aqui, apesar das dificuldades do dia a dia.
Retornando a musicalidade, eu queria compartilhar, ou até mesmo fazer alguém voltar ao passado e perceber os sons que marcaram a sua infância. Os sons das brincadeiras e das atividades do cotidiano me soam como música. Percebo que tem grupo de música que usam o artifício de “barulho” da algazarra das crianças para incrementar a música e nos remeter ao lado bom da vida.
Então, vou relatar a minha musicalidade que estava presente: nos gritos quando faltava ou chegava a luz; nas provocações no tempo de pipa que era um tal de gritarem “foi ehhh!”, “bota outra”, “cortei” e isto ecoava entre a Pedra da Gávea e Pedrabonita, marcado pelas risadas dos amigos de quem foi cortado e perdeu a pipa, a correria para pegar a pipa avoada e alguém dizendo “é minha, é minha”; o som da bola de gude batendo uma nas outras, seguido dos gritos de “marralho”, “papa”, “ganzo”, “búlica” expressões do mundo do gude; o som da moeda batendo no prego na brincadeira de futebol de pregos; a músicas cantadas nas brincadeiras de elástico, pula corda e nas brincadeiras de roda e bater as mãos; o som da lata chutada no pique lata; a música cantada na brincadeira em que fazíamos uma trouxa com jornal e ateávamos fogo para que ela subisse ao som da gritaria “sobe maria preta, sobe maria preta” e repetíamos isto até ela subir, queimar e evaporar tudo isto com muita algazarra, muitos gritos.
Hoje, na minha memória também era um “barulhinho bom” os galos cantando, os grilos na mata, o som das roupas sendo batida nas pedras pelas pessoas que lavavam roupa na “caixinha” e no “Durão”, os gritos das crianças na mata junto com o som dos pássaros, do vento nas folhas, da água seguindo o seu curso e de pessoas cantarolando qualquer música.
Tudo isto relatado fez parte do meu universo particular enquanto criança.
Escrevi este texto e depois cheguei a triste conclusão de que tivemos violência, mas tivemos uma infância com espaço e brincadeiras. Hoje, os becos se estreitaram, os moradores se sufocaram, as brincadeiras acabaram e as armas imperaram.