
Vejo a passarela que separa o meu passado da vida atual — mas não há tempo para pensar nisso. Um tiro me faz voltar à realidade. Procuro abrigo atrás de um carro, policiais empunham fuzis, o tiroteio se intensifica à distância. É mais um dia de confrontos na Rocinha.
Do lado de cá, eu, protegido por um colete à prova de balas obrigatório pelo exercício da profissão de jornalista. Do lado de lá, trabalhadores, crianças uniformizadas, mães aflitas, sem o direito de ir e vir, sem saber o que fazer e sem ter onde se proteger.
Com medo, observo de longe a Via Ápia, principal entrada da Rocinha. Era meu trajeto diário ao descer da Estrada da Gávea em direção ao Colégio Pedro II do Humaitá. Sinto-me como um filho que não reconhece o próprio berço. Durante toda aquela sexta-feira, atravessar a passarela era um risco real de virar alvo dos tiros que teimavam em não cessar.
A cada informação de novos disparos que transmito pelo rádio, imagino um possível jovem numa das casas da favela. O caminho mais curto para um futuro fora dali seria pela educação. Mas, na infância, as aulas são interrompidas pelos confrontos e constantes operações policiais; e, na fase pré-vestibular, não é possível sequer comparecer à prova de seleção para as universidades porque, no dia do exame, há uma invasão de criminosos — e que as autoridades sabiam que iria ocorrer. Como construir uma ponte para o futuro desse jeito?
A resposta (?) veio depois de cinco dias. Tempo que os moradores da Rocinha não têm. Basta um dia, e o trabalhador perde o emprego para dar lugar a outro que more numa área “sem risco”. Basta um dia, e um jovem desiste de estudar por sequer conseguir chegar à escola. Ambos, impedidos de atravessar a passarela. Haja resiliência.
Agora, tropas militares tentam dar o mínimo de segurança. A quem? Aos moradores? Ou para quem é obrigado a passar de carro diariamente pela Autoestrada Lagoa-Barra?
Quem não mora ali vê por apenas alguns segundos a imagem de milhares de barracos no costão do Morro Dois Irmãos, resultado de uma realidade de exclusão social construída por décadas. Tudo fica para trás assim que se entra no Túnel Zuzu Angel, como se houvesse um outro mundo assim que a escuridão termina do outro lado. Quem não mora ali não precisa atravessar a passarela. Trafega a 80 quilômetros por hora debaixo dela e mal a enxerga pelo retrovisor.
Dênis da Rocinha, Bolado, Naldo, Brasileirinho, Dudu, Lulu, Bem Te Vi, Nem, Rogério 157. Codinomes, apelidos, vulgos, trocados ao longo das décadas após operações, cercos, ocupações, pacificações e supostas retomadas de território. Todas necessárias como medidas emergenciais.
Mas e a passarela para a paz, quem constrói?
Che Oliveira é jornalista
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